Após quase três anos de espera, a série Ruptura (Severance, em inglês) voltou à Apple TV+. A segunda temporada começa exatamente no momento em que termina a primeira, ao menos sob o ponto de vista dos “internos”.
E é literalmente naquele momento. Os personagens fazem a transição de onde estavam nos últimos segundos do fenomenal episódio de encerramento da primeira temporada. Mais adiante, eles são apresentados aos que seus “externos” fizeram nos últimos meses: uma pequena revolução.
Ou não. Como tudo em Ruptura, nada pode ser dado como certo.

Sobre o que é a série Ruptura
A série acompanha a rotina dos funcionários da empresa Lumon. Eles passam por um procedimento que coloca um chip no cérebro, dividindo-os em dois: uma pessoa no trabalho, o “interno”, e outra do lado de fora, o “externo”.
O detalhe é cada uma das versões não sabe nada sobre a vida da outra. É uma alegoria extrema da separação total entre a vida pessoal e a profissional.
A situação bizarra rende risadas nos primeiros episódios, mas logo o mistério e o suspense tomam conta. O que exatamente a Lumon faz? O que significam os números que os “internos” ficam refinando? E como começou o culto a Kier, fundador da empresa?
Ruptura ainda aumenta a carga quando passa a incluir dramas pessoais dos personagens, tanto dentro quanto fora do escritório.
Falar mais do que isso traz o risco de estragar as surpresas da narrativa brilhantemente amarrada pelos criadores Dan Erickson e Ben Stiller. Sim, aquele comediante. Caso você não saiba, ele é um gênio.
Enfim, veja o trailer da 1ª temporada:
O ridículo da vida corporativa
Não é porque Ruptura rapidamente se desenvolve para virar um thriller que as premissas iniciais deixam de estar presentes. A separação total entre as personalidades do trabalho e de casa toca diferentes pessoas de diferentes formas, inclusive sendo representadas na série.
Tem quem queira usar o trabalho com um escape de problemas pessoais, e tem quem tenha horror a falar das atividades profissionais quando chega em casa. Ou as duas coisas ao mesmo tempo. E tem também quem inventa um personagem para os papos de cafezinho.
Ruptura leva isso ao extremo, e convida a gente a pensar sobre a nossa própria vida. E a rir e se horrorizar, simultaneamente.
O visual retrofuturista da série, com algumas tecnologias atuais e outras muito antigas, ainda deixa o espectador meio desconfortável, sem saber se aquilo tudo representa o passado, o presente ou o futuro do trabalho.
Os números que ninguém sabe do que se tratam
O paralelo mais óbvio com o trabalho moderno é a função desempenhada pelos valorosos colaboradores da Lumon: eles são refinadores de macrodados. Passam o dia arrastando séries de números para caixas na tela de um computador, sem ter ideia clara do motivo ou das consequências do que estão fazendo. Ou mesmo se há algum sentido naquilo tudo.
Caso você nunca tenha trabalhado com métricas de marketing, saiba que a maioria de nós nesse mercado já se sentiu exatamente assim em algum momento da carreira. Ou o tempo todo.
E quando têm bom desempenho, também sem entender muito bem como, ganham brindes genéricos com a marca da empresa ou pequenas celebrações esquisitas dentro do escritório, com os colegas. Quem nunca?

Os personagens de Ruptura não reagem uniformemente a essas coisas. Tem quem só quer fazer o mínimo e desligar o computador às 6 da tarde, enquanto outros vestem a camisa da empresa para fazer o seu melhor trabalho possível, mesmo sem saber exatamente qual ele é.
A trama evolui quando os “internos” começam a questionar o que fazem, por que fazem e como fazem. Como qualquer pessoa do RH sabe, isso quase nunca acaba bem para nenhuma das partes.
A ruptura ocorre também entre quem assiste
A gente tende a achar que a relação com o trabalho é universal, quando na verdade é extremamente pessoal. O mesmo acontece com ver Ruptura.
A série, principalmente no começo, pode ser um espelho tanto para quem é satisfeito quanto para quem é descontente na vida profissional. O que é uma doce rotina para uma pessoa pode ser um marasmo desesperador para outra. E uma das belezas do roteiro é que ele debocha igualmente dessas duas pessoas.
Como eu disse, esse é apenas o gancho inicial da série. Ela rapidamente deixa de ser um The Office bizarro para virar um Lost corporativo.
Mas as pequenas referências à cultura corporativa volta e meia reaparecem para te dar uma cutucada. Os criadores de Ruptura acham tudo isso que a gente vive uma loucura, aparentemente inevitável. E inclusive transformam o famigerado culto aos fundadores, e à empresa em si, em uma religião.
É assim que é. Goste ou não, a gente tem que lidar com isso.

Refinamento de macrodados: o supremo “bullshit job”
Influenciado por Ruptura, estou lendo o livro “Bullshit Jobs: a Theory”. Não que Ben Stiller ou Dan Erikson o tenham citado como referência em alguma entrevista, mas tem bastante a ver. E é um baita título, né?
O livro surgiu de um artigo publicado há mais de 10 anos, que começa da seguinte forma, em tradução livre:
No ano de 1930, John Maynard Keynes previu que, no final do século, a tecnologia teria avançado o suficiente para que países como a Grã-Bretanha ou os Estados Unidos tivessem alcançado uma semana de trabalho de 15 horas. Há todos os motivos para acreditar que ele estava certo. Em termos tecnológicos, somos perfeitamente capazes disso. E ainda assim isso não aconteceu. Em vez disso, a tecnologia foi mobilizada, no mínimo, para descobrir formas de nos fazer trabalhar mais. Para conseguir isto, foi necessário criar empregos que são, efetivamente, inúteis. Grandes grupos de pessoas, em particular na Europa e na América do Norte, passam toda a sua vida profissional realizando tarefas que secretamente acreditam que não precisam realmente de ser executadas. O dano moral e espiritual que advém desta situação é profundo. É uma cicatriz em nossa alma coletiva. No entanto, praticamente ninguém fala sobre isso.
O desenvolvimento acelerado da Inteligência Artificial deve retomar o interesse pela “teoria dos trabalhos inúteis”. É uma tecnologia que potencialmente vai assumir praticamente todo tipo de trabalho realizado hoje por um humano em frente a uma tela de computador.
A gente pode pensar o que fazer a respeito disso, ou apenas servir de combustível para as máquinas, como fizemos até hoje. Eu não sei a resposta.
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