Com certo atraso, assisti recentemente a todos os episódios de The White Lotus, série da HBO (ou MAX agora, sabe-se lá por quê). O humor ácido e a sátira das relações humanas conquistaram os espectadores, tanto que já há uma terceira temporada prevista para o ano que vem.
Em ambas as temporadas, há a mesma fórmula: logo de cara, você sabe que alguém morreu em uma unidade da rede de resorts de luxo White Lotus. Em seguida, a ação volta no tempo para contar a história dos personagens, todos vítimas em potencial.
O mistério serve como largada para as tramas, mas os personagens são tão bons que às vezes você esquece que alguém vai morrer. E todos eles, sem exceção, são absolutamente detestáveis.
Ou seja, você nem precisa torcer para alguém sobreviver. Nem consegue, na verdade. E nem se trata de julgamento moral.
Os personagens detestáveis de The White Lotus
O criador de The White Lotus, Mike White, foi muito hábil em escrever personagens que tornavam impossível qualquer simpatia ou mesmo empatia.
Eles têm defeitos de caráter, moralidade dúbia, tomam decisões erradas ou são irritantemente burros. Alguns reúnem tudo isso ao mesmo tempo.
A maior expoente desse combo é a única personagem que aparece em ambas as temporadas: Tanya McQuoid, vivida de forma hilariante — e detestável — por Jennifer Coolidge (a eterna mãe do Stifler).

Na segunda temporada, por exemplo, temos um trio de filho (burro), pai (mentiroso) e avô (cafajeste) que vai para a Sicília em busca de suas raízes italianas.
Chegam também dois casais irritantes com questões mal resolvidas entre si, e Tanya, seu marido e sua assistente, todos odiosos e/ou insuportáveis. E conectando essas tramas, duas jovens prostitutas golpistas italianas entram em ação sob a complacência do estafe de idiotas do resort.
>> Leia também aqui no blog: O livro “As Mentiras da Nonna” e as broncas que tomei de garçons italianos
Temos ainda um grupo festeiro suspeitíssimo de homens ricos, acompanhados de um sobrinho bêbado com o sotaque inglês mais detestável, o de Essex.
A arte de Mike White está em te segurar por todos os sete episódios com essa turminha do barulho que você quer enforcar. As atuações também são brilhantes, principalmente de Jennifer Coolidge — que ganhou o Emmy.
E houve inclusive uma evolução em relação aos personagens da primeira temporada, que se apoiavam mais em estereótipos. Ela tinha, por exemplo, uma jornalista jovem, linda e idealista que queria mudar o mundo
Tipo eu quando entrei na faculdade.
Se todo mundo é irritante, por que ver?
O fato de todos os personagens serem detestáveis não impede The White Lotus de ser um ótimo entretenimento. Talvez até o seja justamente por isso.
O roteiro é muito bom, e cada uma das três subtramas da segunda temporada daria facilmente um filme. Teríamos três filmes independentes muito interessantes, aliás, mas isso é conversa para outra hora.
Vendo a série, volta e meia eu me lembrava de Michael Scott, personagem principal de The Office, comédia da qual sou fã incondicional. Muita gente, porém, não consegue passar da primeira temporada da série de tão detestável que ele é. E eu sempre tento convencer essas pessoas a continuar, porque o Michael fica um querido depois. Ou quase.
No livro The Office: The Untold Story of the Greatest Sitcom of the 2000s: An Oral History, os próprios criadores explicam que precisaram repensar o personagem do gênio Steve Carrell:
Quando você está assistindo a um programa de televisão, você quer ter alguém por quem torcer. E mesmo que ele não seja o personagem perfeito, você quer poder passar algum tempo com ele, então houve uma decisão consciente de suavizar um pouco o personagem de Michael Scott.
Eu não concordo muito com isso de ter por quem torcer, mas no caso do Michael Scott você realmente acaba se afeiçoando por ele. Do chefe e ser humano horroroso da primeira temporada, ele passa a ser apenas uma pessoa em busca de amor e felicidade com seus amigos nas outras seis.

Já em The White Lotus, você até torce para alguns personagens morrerem, mas acho que não é a isso que a citação ali se refere.
Tanya McQuoid, inclusive, fica ainda mais detestável da primeira para a segunda temporada. Mike White, portanto, não viu no chefe da Dunder Mifflin Paper Company em Scranton um modelo a ser seguido.
Aliás, se você é fã de Michael Scott e The Office como eu, o livro que indiquei ali em cima é ótimo. É a história da série contada diretamente pelas pessoas envolvidas (atores, redatores, diretores, etc.), passando por todas as temporadas, personagens e episódios memoráveis, cheios de bastidores.
Os homens difíceis das séries dos anos 2000
Outro livro legal, que também tem muito a ver com o assunto deste post, é Homens Difíceis. Não, não é um livro sobre os seus relacionamentos (ou sobre você). É sobre a virada da televisão nos anos 2000.
Usando séries hoje clássicas como Mad Men, Breaking Bad e The Sopranos, ele explica como os protagonistas de séries deixaram de ser pessoas perfeitas e modelos de pai de família para serem homens extremamente complexos, problemáticos, cheios de falhas e até mesmo criminosos.
Ou seja, potencialmente detestáveis.
E, de fato, algumas pessoas detestam Don Draper, Walter White e Tony Soprano (os protagonistas da santíssima trindade das séries), mas a vasta maioria dos fãs torceu loucamente para que se dessem bem. O livro explica:
Se fossem dar ouvidos às opiniões convencionais ainda em vigor, esses seriam personagens que os americanos nunca permitiriam entrar em suas casas: criaturas infelizes, moralmente incorretas, complicadas, profundamente humanas. (…) Em parte, o público mostrava-se disponível porque esses programas traziam homens enfrentando batalhas que os espectadores reconheciam.
Note que ali ainda se fala, de certa forma, de ter por quem torcer. Mais um ponto para The White Lotus. É claro que é uma série de outro gênero, não é um drama como as outras três, mas parece ser um passo adiante.
É muito fácil torcer por Don Draper ou Michael Scott. Já pela mãe do Stifler…
Bônus: as pessoas horríveis de Succession
Eu já tinha terminado este texto e mandado para a rotativa quando lembrei de Succession. Como falar de pessoas detestáveis em séries e não mencionar a família Roy?
Vacilei, peço desculpas aos meus escassos leitores.
Succession foi um triunfo na arte de criar personagens horríveis. Logan Roy e seus filhos Connor, Kendall, Shiv e Roman não tinham nenhuma qualidade redentora, apenas fraquezas pessoais. Todos cometeram atrocidades. Ok, talvez não o Connor, mas ele era detestável como um todo.

E, mesmo assim, o espectador se sentia compelido a escolher um dos filhos para a sucessão do patriarca, ou então para que o próprio Logan passasse a perna na prole.
Esse era, afinal, o sentido da série.
E eu conseguia ter empatia com alguns personagens. Mais especificamente, os “Disgusting Brothers”: Tom Wambsgans e o Primo Greg. Igualmente sedentos por poder, porém com uma certa leveza de dois patetas inseguros, eles conquistaram milhões de fãs, incluindo eu.
A família de Succession também era rica e poderosa demais, com uma vida inacessível para nós mortais. Os resorts de The White Lotus são top, claro, mas nenhum dos Roys colocaria os pés neles. Não seriam exclusivos o suficiente.
Por isso, você não consegue pensar “eu faria isso em vez de aquilo nessa situação” em alguma trama de Succession. Nós nunca estaríamos lá.
Já em The White Lotus, bate várias vezes o ódio de “não é possível que ele vai fazer isso e não aquilo”, porque, embora caricaturais, os personagens são perfeitamente reais e plausíveis.
Em resumo: assista e deteste todas, porque são ótimas séries!
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