Me leva que eu vou, sonho meu, atrás do Errejota só não vai quem já morreu

Aos 42 anos, finalmente, fiz algo que todo brasileiro precisa fazer uma vez na vida: passei o carnaval no Rio de Janeiro. E não há justificativa para a minha demora, já que tenho uma irmã que mora por lá há quase 30 anos.

Só que estou sentindo que fui na hora certa, no momento de vida adequado e com a maturidade para apreciar verdadeiramente o espírito carioca.

De qualquer forma, se você não quiser continuar lendo o texto, fique apenas com um conselho: vá uma noite na Marquês de Sapucaí. É um negócio bonito demais, uma das maiores expressões culturais do mundo.

E eu vou começar este post com alguns dos meus sambas-enredo preferidos. Eram eles que ficavam tocando na minha cabeça em alguns dos melhores momentos deste carnaval.

Sambas-enredo clássicos e as saudades do carnaval que não vivi

O ano era 2005. Fui passar o carnaval com amigos em Laguna, cidade do litoral catarinense conhecida por Anita Garibaldi, pelo Tratado de Tordesilhas e por ter uma das maiores folias de rua do Brasil.

O funk carioca e o axé baiano dominavam as paradas. “Festa no Apê”, do cantor Latino, era o hit oficial daquele carnaval. Ivete Sangalo havia lançado há pouco tempo seu maravilhoso disco “MTV Ao Vivo”, com versões definitivas dos seus sucessos da época da Banda Eva.

Grandes canções no espírito da festa, de fato. Porém, decidi gravar um CD com alguns dos melhores sambas-enredo clássicos para ouvir no trajeto entre a praia do Gi, onde estávamos, e a do Mar Grosso, onde rolava a muvuca.

Aquela estradinha entre as pedras, passando ao lado do Laguna Tourist Hotel, pedia uma trilha sonora apropriada!

E eram realmente clássicos, músicas que fazem até hoje parte do imaginário popular, das idealizações de carnaval e dos blocos de rua. São celebradas e cantadas a plenos pulmões mesmo por quem, como era o meu caso, não as viveu quando foram lançadas. Ouça algumas delas:

Mocidade – Sonhar não custa nada (1992)

Para mim, é disparada a melhor letra de todos os carnavais. É uma poesia completa, cheia de sonho e romance. Vai na contramão de outros sambas, que capricham nos refrões, mas se perdem nas estrofes. Dá uma lida na letra abaixo, enquanto ouve no vídeo acima.

Sonhar não custa nada
E o meu sonho é tão real
Mergulhei nessa magia
Era tudo o que eu queria
Para esse carnaval
Deixe a sua mente vagar
Não custa nada sonhar
Viajar nos braços do infinito
Onde tudo é mais bonito
Nesse mundo de ilusão
Transformar o sonho em realidade
E sonhar com a mocidade
É sonhar com o pé no chão

Estrela de luz
Que me conduz
Estrela que me faz sonhar
(2x)

Ai, amor
Amor, sonhe com os anjos
Não se paga pra sonhar
Eu sou a noite mais bela
Que encanta o teu sonho
Te alucina por te amar
Vem nas estrelas do céu
Vem na Lua-de-mel
Vem me querer

Delírio sensual
Arco-íris de prazer
Amor, eu vou te anoitecer
(2x)

Eu vejo a Lua no céu
A Mocidade sorrir
De verde e branco na Sapucaí

União da Ilha – De bar em bar (1989)

Essa é uma celebração da atividade a que todos se entregam com louvor no carnaval: beber. A alegria incontida e a leveza da inconsequência realmente sem consequências são o melhor retrato dos 4 dias em que a gente esquece de todos os problemas para ser feliz.

Hoje eu vou tomar um porre
Não me socorre que eu tô feliz
Nessa eu vou de bar em bar
Beber a vida que eu sempre quis

E no bar da ilusão eu chego
É pura paixão que eu bebo
Amor me deseja, me dá um chamego
Me beija e faz um cafuné
Bebo vem e bebo vai que nem maré
Balança mas não cai, boêmio é

Garçom, garçom
Bota uma cerva bem gelada aqui na mesa
Que bom, que bom
Minha alegria deu um porre na tristeza

Poeta enredo da canção
Cartilha que eu aprendi
Canta a Ilha de emoção
Saudade de você, Didi

Amor, amor, eu vou
É nessa aqui que eu vou
O sol vai renascer do meu astral
Amor, amor, eu vou, ô esquindô, esquindô
Num gole eu faço um carnaval

União da Ilha – É hoje (1982)

Esse samba-enredo é do ano em que nasci e, assim como eu, virou um grande clássico de carnaval. A letra tem uma pegada muito legal, que é aquela coisa de você se sentir protagonista da festa e da alegria, ao mesmo tempo em que percebe que é só mais um no meio de um mundo de gente feliz.

A minha alegria atravessou o mar
E ancorou na passarela
Fez um desembarque fascinante
No maior show da Terra

Será
Que eu serei o dono desta festa?
Um rei
No meio de uma gente tão modesta
Eu vim descendo a serra
Cheio de euforia para desfilar
O mundo inteiro espera
Hoje é dia do riso chorar

Levei o meu samba pra mãe de santo rezar
Contra o mau-olhado, carrego o meu patuá

Acredito ser o mais valente
Nesta luta do rochedo com o mar
E com o mar
É hoje o dia da alegria
E a tristeza nem pode pensar em chegar

Diga, espelho meu
Se há na avenida alguém mais feliz que eu
Diga, espelho meu
Se há na avenida alguém mais feliz que eu

Outros grandes sambas (ou refrões)

O meu CDzinho de Laguna tinha muitos outros clássicos. Grandes refrões como “Eu vou tomar um porre de felicidade / Vou sacudir, eu vou zoar toda cidade” ou “Me leva que eu vou, sonho meu / Atrás da verde-e-rosa só não vai quem já morreu”.

Outra baita hit era um samba-enredo de 1986 da Império Serrano com forte mensagem social e de igualdade, mas que encerrava com o erótico trecho “Vem meu bem, vem meu bem sentir o meu astral, que legal / Hoje estou cheio de desejo, quero te cobrir de beijos, etecetera e tal”. Nada mais carnaval que isso.

Tinha ainda o maior de todos os refrões: “Explode coração na maior felicidade / É lindo o meu Salgueiro contagiando e sacudindo essa cidade”.

Foi com essa memória afetiva de carnavais que vivi e de sambas-enredo que não vivi ao vivo que cheguei ao Rio de Janeiro em 2025. E ao templo maior da festa: o Sambódromo da Marquês de Sapucaí.

E vamos para o desfile de carnaval na Marquês da Sapucaí

Minha senhora passou os últimos meses escutando em casa e no carro os sambas-enredo das quatro escolas que veríamos ao vivo, na primeira noite de desfiles: Unidos de Padre Miguel (não era a Mocidade), Imperatriz Leopoldinense, Viradouro e, a maior de todas, Mangueira.

Nenhum deles me conquistou. De uns anos para cá, houve uma virada das escolas de samba em priorizar as temáticas de ancestralidade africana. Faz total sentido e é muito justo, dado que a festa é feita, quase em sua totalidade, nas comunidades cariocas por descendentes de escravizados.

As letras, assim, acabam não conversando comigo. E tá tudo bem, eu não sou o centro do mundo e muito menos o dono dessa festa no meio de uma gente tão modesta. As músicas com temáticas de luxúria e bebedeira seguem vivas nos blocos, de qualquer forma, como veremos mais à frente.

E os sambas continuam tendo harmonias e melodias muito bem trabalhadas. Além disso, a bateria… meu amigo, a bateria!

Ficamos no Camarote nº1, logo no começo da avenida, curtindo a proximidade da bateria por mais tempo. Só quando ela passou na minha frente, porém, pude ter a verdadeira dimensão daquilo tudo. É preciso recorrer ao clichê de dizer que senti as batidas dentro de mim, e o coração foi junto. Me arrependi de nunca ter aprendido a sambar, porque vontade não faltou.

E eu não sei explicar, mas a bateria da Mangueira é diferente mesmo. Os ritmos quebrados te pegavam de surpresa, gerando inclusive silêncios — que eram preenchidos pela Manu cantando com paixão, para surpresa da galera do camarote que estava mais interessada em tirar selfies.

Ah, não vi muitas celebridades, só a Sabrina Sato. Nenhum jogador de futebol dos anos 90. E a Rebeca Andrade estava lá, mas infelizmente não vi.

Desfile para ouvir e, claro, para ver

Nada contra tirar selfies, afinal ao fundo estariam os belos carros alegóricos e as alas com fantasias coloridas e lindíssimas. É tudo muito bonito mesmo, com cores e formas que se combinam de um jeito que eu nunca havia visto.

Carros com luzes, movimentos e efeitos visuais levam a magia do carnaval adiante, mas com um pé na história. Tudo é mecânico, quase tradicional.

Separei umas fotinhos de alguns dos carros e alegorias na galeria abaixo:

Outra coisa bacana de ver ao vivo é a coordenação de cada uma das alas. Tem muita gente na avenida cuidando para que o desfile seja perfeito em cada detalhe. E, mesmo assim, eles cantam o samba o tempo todo.

É bem legal de ver também os maestros da bateria, ditando o ritmo de cada grupo de instrumentos. O ouvido dessas pessoas precisa ser perfeito, para notar qualquer batida fora do tom. E eles regem mesmo, pois são responsáveis por uma verdadeira orquestra de batidas.

Mas nada é mais bonito que os casais de Mestre-Sala e Porta-Bandeira. A reverência do público se reflete no aplauso mais entusiasmado em cada um dos desfiles. São realmente as rainhas e os reis do samba, sempre sorrindo!

Ah, e não vi celebridades desfilando, também. Ou ao menos não reconheci.

Bloquinhos de carnaval e o espírito do Rio de Janeiro

O Rio de Janeiro é uma versão reduzida do Brasil, com tudo o que temos de melhor e de pior. Só que tem algo que é único do carioca, e que fica ainda mais exacerbado no carnaval: o jeito de viver a vida.

É uma vibe, na falta de palavra melhor em português. E é contagiante, já que tudo fica mais leve, engraçado e com um fundo de sacanagem. Da boa.

Os blocos de carnaval são a maior expressão disso, porque mesmo quem não é carioca entra no espírito da perdição e da inconsequência sadia. As pessoas parecem querer apenas tomar uma cerveja e beijar na boca sob um sol escaldante e um calor senegalês, com um breve alívio da brisa da praia.

Dessa vez, fui o tiozinho que fica estimulando os jovens da janela. O prédio da minha irmã foi um verdadeiro camarote para a zorra dos bloquinhos do Leblon. E eu já não tenho a capacidade física da época de Laguna.

Mas muito melhor é algo que tenho agora: uma esposa maravilhosa, um amor pra chamar de meu, coisa que obviamente não tinha há 20 anos (e nem imaginava que um dia teria). Curtimos da janela, dos quiosques da orla, do Bracarense e também da praia, a uma distância saudável, porém que ainda permitia sentir a vibe carioca.

E, importante, a uma distância que permitia ouvir os trios elétricos bombando os sambas antigos daquele CDzinho, misturados aos hits do disco da Ivete Sangalo e outros clássicos do axé. A alegria incontida do carnaval do Rio de Janeiro se misturava a uma nostalgia boa de uma vida bem curtida.

Enquanto isso, hordas de jovens vestidos de maiô e meia arrastão ou de saia de tule de balé, sem distinção de gênero, passavam na rua e cumpriam a função social do carnaval: viver um hiato de 4 dias na realidade.

Afinal, sonhar não custa nada. E era essa a música que estava tocando no vídeo que eu fiz sendo o tiozinho da janela:

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Comentários

Uma resposta para “Me leva que eu vou, sonho meu, atrás do Errejota só não vai quem já morreu”

  1. Avatar de Cláudia Volpato Andrade
    Cláudia Volpato Andrade

    Amei! Descreveu o melhor do Carnaval do Rio à maestria! Emocionada por aqui.

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