Minha primeira memória da atriz Fernanda Torres é de ser meu primeiro crush televisivo. Em 1986, ela estrelava a novela “Selva de Pedra”, na Globo. Eu tinha só 3 anos, mas me lembro de ter ficado hipnotizado por sua beleza.
Ou acho que me lembro, como já escrevi tantas vezes neste blog. Mas nesse caso tenho quase certeza, talvez senha sido uma memória formadora.
E era uma novela das 8, então eu devia estar grogue de leite morno em uma noite qualquer em que a minha mãe me deixou ficar acordado até mais tarde na frente da TV. Foi assim que me apaixonei.

Cerca de 15 anos depois, a Vani de “Os Normais” era um crush nacional, sendo hilária e maluca em doses semelhantes. A atriz brilhava ao lado de Luiz Fernando Guimarães, com os textos geniais e levemente doentios de Fernanda Young e Alexandre Machado.
Agora, em 2024, Fernanda Torres virou paixão dos brasileiros quando está chegando aos 60 anos, graças ao sucesso do filme “Ainda Estou Aqui”, pelo qual foi indicada hoje ao Globo de Ouro.
Eu vi o filme há algumas semanas e fiquei mais uma vez hipnotizado por ela, embora de uma forma diferente de quando era apenas um gurizinho.
Um silêncio que grita em que cada cena
Fernanda Torres vive Eunice Paiva, esposa do engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva, torturado e morto pela ditadura militar brasileira em 1971. O filme é baseado no livro de mesmo nome de Marcelo Rubens Paiva, filho do casal, que registra nele as suas memórias e também as da mãe.
Além da morte de Rubens Paiva, o filme e o livro “Ainda Estou Aqui” relatam os anos subsequentes. Eunice precisou criar sozinha os cinco filhos, enquanto lutava para saber a verdade sobre o que havia acontecido com seu marido e estudava Direito. No fim da vida, sofreu com o Mal de Alzheimer.
A interpretação de Fernanda Torres é muito reverente à história de Eunice. Os momentos que mais mexem com a gente são justamente aqueles em que ela precisa suprimir qualquer tipo de emoção.
As cenas dos 12 dias em que foi submetida à tortura e, também, aquelas em que volta para casa são de sussurros, medo, lágrimas sem gritos e da necessidade de parecer calma para não acabar com a esperança dos filhos. O desespero é mais ensurdecedor quando não faz barulho algum.
Fernanda soube viver uma mulher que se recusava a chorar em público, como mostra a cena em que nega o pedido do fotógrafo da revista Manchete para que ficassem sérios. A pauta era o desparecimento de Rubens Paiva, e ela faz questão de que os filhos sorriam, desafiando a ditadura militar.
O sumiço de Rubens Paiva no filme
“Ainda Estou Aqui” tem muitas outras cenas brilhantes, cortesia não apenas das atuações, mas também das escolhas do diretor Walter Salles. A que mostra Rubens Paiva sendo levado por agentes da repressão é uma delas.
Selton Mello passa uma enorme tranquilidade, tanto para a família quanto para o espectador, garantindo que tudo vai dar certo. É ainda mais tocante porque, é claro, a gente sabe que o que aconteceria depois. Mas, como é um filme sobre Eunice, não há imagens de tortura ou de morte.
O Rubens Paiva de Selton Mello simplesmente some de cena, como sumiu na vida real. O sentimento constante de e ausência e a expressão de dor contida de sua esposa são mais fortes que qualquer violência gráfica.
Outra cena belíssima da história ocorre quando Eunice finalmente se permite gritar de raiva, com a morte do cachorro da família. O filme trabalha muito bem esse momento como um contraponto a ela ter passado todo o resto do tempo gritando apenas internamente, tentando parecer forte para os filhos e para o Brasil. É um ponto de virada da trama.
O final com Fernanda Montenegro
Nos minutos finais do filme, Fernanda Montenegro, a mãe de Fernanda Torres, assume o papel de Eunice, já muito debilitada pelo Alzheimer.
Novamente, o silêncio e a contenção — obviamente por motivos diferentes — transmitem com perfeição a dor de Eunice. A tristeza de ver alguém que lutou tanto pela preservação de uma memória perder a própria é muito forte. E com certeza foi o que fez muita gente chorar nos cinemas.
“Ainda Estou Aqui”, porém, é uma celebração da vida de Eunice Paiva, que teve uma intérprete à sua altura em Fernanda Torres. Uma celebração sem festa.
Aliás, foi assim que o público saiu da sessão em que vi o filme, na Cinesala (o cinema mais legal de São Paulo): em silêncio e absorvendo o que tinha acabado de ver. Não houve aplausos nem palavras de ordem. Só choro discreto e contemplação, assim como na telona, e um cada vez mais raro momento de união entre pessoas diferentes entre si.

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