Eu comecei a ler Luis Fernando Veríssimo na adolescência. Na mesma época, escutei de professoras de português aquela frase clássica que já arruinou a vida de muita gente: “nossa, como seus textos são bons, você deveria ser escritor”.
E cá estou eu tentando seguir esse conselho ruim mais uma vez. Talvez agora seja sério.
O Veríssimo, aliás, foi a minha primeira grande influência. Eu escrevia contos cheios de diálogos curtos, supostamente inteligentes, achando que isso resumia o estilo dele.
O fato é que eu estava no caminho certo, mesmo sem perceber: umas das melhores formas de se desenvolver na arte, seja ela qual for, é começar imitando artistas dos quais você gosta. Se está certo ou não, é um mero detalhe, porque o refinamento vem com o tempo, gerando o seu estilo próprio.
Isso não sou só eu quem digo, mas muita gente que estuda de verdade a produção de arte e a vida criativa. Um exemplo é o Austin Kleon, que tem um blog muito inspirador e publicou o livro “Roube como um artista: 10 dicas sobre criatividade”.
Com a morte do Veríssimo, fiquei tentando me lembrar de quando foi que eu desisti de tentar imitá-lo. Aproveitando que estou em Florianópolis, até reuni todos os livros dele que tenho para tirar uma foto, reler alguns e decifrar esse mistério.
“Ele: tirolês. Ela: odalisca.”: uma das maiores aberturas da literatura brasileira
Meu conto preferido do Luis Fernando Veríssimo – e creio que também de muita gente – é “Conto nº 2 de verão: Bandeira branca”. Ele narra os encontros e desencontros de um homem e uma mulher nos carnavais dos 4 aos 30 anos de idade.
Ele está publicado na coletânea “Histórias brasileiras de verão”, de 1999, e foi também o conto escolhido para representar o autor no livro “Os 100 melhores contos do século”.
Essa pequena obra-prima tem as características quase canônicas do estilo do Veríssimo: os diálogos curtos (viu?), o amor bobo da juventude, a imaturidade sentimental, os (des)encontros fortuitos, o ridículo com que a gente se identifica, a timidez que impede grandes gestos e, até, um personagem que trabalha em repartição pública.
Vou reproduzi-lo abaixo na íntegra. Se eu for processado por direitos autorais, depois vocês me ajudam com um pix.
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Conto nº 2 de verão: bandeira branca
Ele: tirolês. Ela: odalisca. Eram de culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um mantinha de confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval.
Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia. Tentaram recomeçar o mantinha, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.
Só no terceiro Carnaval se falaram.
— Como é teu nome?
— Janice. E o teu? — Píndaro.
— O quê?!
— Píndaro.
— Que nome!
Ele de legionário romano, ela de índia americana.
***
Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era sócia.
— Ah.
Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira branca, ele veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse “Até o Carnaval que vem” e saiu correndo.
No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca. Na hora da despedida, ele pediu:
— Me dá alguma coisa.
— O quê?
— Qualquer coisa.
— O leque.
O leque da bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão.
***
No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes tirando o leque do seu esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo lavado. O que acontecera?
— Você vomitou a alma — disse a mãe.
Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela.
Mas, no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube — e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida.
— Sei lá. Bávara tropical — disse ela, rindo.
Estava diferente. Não era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto. Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval.
— E aquela bailarina espanhola?
— Nem me fala. E o toureiro?
— Aposentado.
A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda, finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. Todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse “Píndaro?!” e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia de sultão. O Marcelão tinha o que ele precisava para encher o buraco deixado pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo menos não inteiro.
Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi “pelo menos o meu tirolês era autêntico” e desistiu. Mas, quando a banda começou a tocar Bandeira branca e ele se dirigiu para a saída, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo “não vale, você cresceu mais do que eu” e encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro.
***
Encontram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval. Por acaso, num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do interior, para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse “quase não reconheci você sem fantasias”. Ele custou a reconhecê-la. Ela estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A última coisa que ele lhe dissera fora “preciso te dizer uma coisa”, e ela dissera “no Carnaval que vem, no Carnaval que vem” e no Carnaval seguinte ela não aparecera, ela nunca mais aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele, como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na fantasia de falsa bávara…
— O que você ia me dizer, no outro Carnaval? — perguntou ela. — Esqueci — mentiu ele.
Trocaram informações. Os dois casaram, mas ele já se separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil… E a todas essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o nome dele? Péricles. Será Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que ainda tenho o leque? Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu…
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Parecia ser fácil imitar Luis Fernando Veríssimo
Imitar Luis Fernando Veríssimo me parecia muito fácil na adolescência. Esse conto, por exemplo, era a minha cara: timidez, fracasso em verbalizar sentimentos, carnavais exageradamente etílicos, futuro amoroso potencialmente triste… Até meu pai era bancário e queria que eu fizesse concurso!
O problema é que eu não tinha muita história para contar. Tinha vivido pouca coisa e tido acesso a poucas pessoas interessantes. E mesmo quando tive, a timidez me impedia de desenvolver grandes relacionamentos, inclusive de amizade. Até em casa eu me interessava pouco em conhecer as histórias da família.
Em resumo, eu era um jovem que tinha alma de velho, mas me faltava experiência, sabedoria e vivência. Se bobear, na real nem a alma eu tinha.
O Veríssimo foi um grande observador da vida real e consumidor voraz de tudo que é tipo de arte: livros, discos, filmes, pinturas e tudo mais. Assim, tinha um repertório inesgotável para seus textos.
E o mais importante: escrevia todos os dias sobre tudo o que via e vivia. Dizia que era um gigolô das palavras – que inclusive é o nome do seu primeiro livro – e que a sua maior musa inspiradora era o prazo de entrega.
Isso é que era verdadeiramente importante para imitar Luis Fernando Veríssimo. Eu, porém, achava que era só escrever uns diálogos curtos. Como eu não conseguia escrever nada que prestasse, ou ao menos que eu julgasse minimamente parecido com os textos do meu ídolo, desisti de tentar ser seu clone.
Mesmo assim, Veríssimo foi a minha maior influência
Apesar de eu tê-lo abandonado com o tempo, Luis Fernando Veríssimo foi, sem dúvida, a minha maior influência na escrita. Sempre busquei a precisão e a economia de palavras, tentando incluir um pouco de humor quando era possível.
O ridículo do cotidiano virou matéria-prima para muitos dos meus textos no Laranjas, gerando aspas meio absurdas de personagens invariavelmente perplexos com situações banais. Assim como “o popular” de Veríssimo, a maioria dos entrevistados fake que eu incluía nas reportagens fictícias do site eram meros observadores, mas fundamentais para as piadas.
Neste blog, tenho dado vazão a algo que inconscientemente aprendi com ele. Meus textos são sobre coisas que vi e vivi, com um senso de humor por vezes autodepreciativo, mas com afeto por mim mesmo. E sigo achando tudo meio ridículo.
Agora, relendo os livros dele aqui em Floripa, está dando vontade de voltar a tentar imitá-lo. Quem sabe escrever contos, caprichando nos diálogos curtos?
Antes de mais nada, porém, preciso escrever mais. E escrever sempre, respeitando a musa de um prazo de entrega que eu mesmo terei que delimitar. Vou recomeçar por “Comédias da Vida Privada”, me parece ser uma boa ideia.
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