O cappuccino preferido do meu pai e as pequenas saudades que fazem sorrir

Meu pai morreu há pouco mais de um mês, na noite de 3 de abril. Foi uma partida demorada e dolorosa, que na verdade durou alguns anos, desde que as doenças cognitivas dele se agravaram. Não foi de uma hora para outra, portanto, mas quando o fim chegou pareceu de repente, abrupto.

Aos poucos, a dor e o sofrimento da perda e daqueles dias de internação vão dando lugar às boas lembranças. Nos últimos anos, elas foram poucas, devido aos problemas causados pela demência do nosso velhinho.

Só que ele teve uma vida longa, 85 anos, dos quais tive a honra de fazer parte de metade, então tem muita coisa boa para lembrar e celebrar. Escrevi sobre isso no Instagram, depois do velório:

Quando eu nasci, meu pai tinha 43 anos. Em 1982, isso era o suficiente para ele ser qualificado como um pai-avô. Tinha até um médico da família que sempre dizia “manda um abraço para o seu avô”, ao que eu retrucava, possesso do alto dos meus 5 anos: “ele não é meu vô, ELE É MEU PAI”.

Por isso, durante toda a infância tive medo de que o meu pai-avô fosse embora mais cedo, de uma hora pra outra. Afinal ele já era grisalho e mais velho que os pais de todos os meus amigos – embora agora, olhando pra trás, eles não fossem assim tão mais joviais não.

Mas eu vi meu pai viver para virar avô de verdade. E para perceber que ele brincava com o Gui e a Rafa da mesma forma como brincava comigo, seu temporão: rindo e fazendo palhaçadas, cheio de leveza. Hoje eu entendo que, pelo jeito, tive uma baita sorte de ter um pai e avô ao mesmo tempo.

E se eu tiver um filho, olha só como é o destino, vai ser com a mesma idade (ou até mais) que o meu pai me teve. Se o meu filho tiver sorte, eu vou conseguir ser uns 10% do pai-avô que o meu foi pra mim. Vou me esforçar.

Obrigado pela vida feliz que você me proporcionou, meu pai. Agora descansa, que um dia a gente se encontra de novo para um cafezinho.

Uma memória afetiva que me pegou nesse mês e meio tem justamente a ver com a última frase do texto. Do nada, voltei a tomar cappuccino do jeito que o meu pai gostava: aquele bem doce, feito com um pó pronto.

E quente, muito quente. Tenho sérias dúvidas se o seu Volpato ainda sentia alguma coisa na língua, dado seu gosto por cafés e sopas fervendo.

Eu tomando cappuccino com o pai
Eu e o pai tomando cappuccino no Beiramar Shopping

O cappuccino brasileiro do meu pai, e seu filho metido a italiano

Um dos primeiros posts deste blog foi sobre café. Nele, lamentavelmente renego não apenas o cappuccino que o meu pai amava, mas também o Nescafé solúvel dele do dia a dia. Equivocado é pouco.

Fiquei insuportável depois de ir para a Itália em 2019. Voltei tomando apenas espresso curto e o verdadeiro cappuccino italiano, feito com espresso e leite vaporizado. Nada de cacau e canela, cruzes! Na real eu já era insuportável antes, apenas adicionei uma camada extra de chatice.

Até tentei apresentar ao meu pai o tal do cappuccino italiano. Ele demonstrava zero interesse, respondendo, não sem razão, que “isso aí que tu tá falando é café com leite, filho, me leva no shopping mesmo”.

O Riviera Café, do Beiramar Shopping, foi o lugar preferido do meu pai em seus últimos anos. As garçonetes já sabiam de cor o pedido daquele senhor de boina e casaco puffer azul: cappuccino tradicional sem lactose (…pequena pausa para fazer drama…) BEM QUENTE. E com muita ênfase no BEM QUENTE.

E ele ainda botava um pacote de adoçante em pó.

Eu, metido a italiano, fazia cara de nojinho e pedia meu espresso curto. Ou então um café com leite, acreditando de forma arrogante que não saberiam fazer um cappuccino italiano.

Foi o último pequeno ritual do pai com seus filhos, antes de começar a se recusar a sair de casa de vez. E, por isso, dá saudades.

Um cappuccino daquele bem cremoso, por favor

Desde que ele se foi, eu só peço o cappuccino do seu Volpato. Desacostumado e temeroso de ver o italiano, ainda peço “daquele bem cremoso, tá”.

E só faço isso em Floripa. Quando estou em São Paulo, volto ao modo chato metido a carcamano. Não sei, é como se na Ilha eu me transportasse no tempo até antes da pandemia, e estivesse tomando um cappuccino com o pai ainda saudável, conversando sobre a vida meio com pressa, sem me dar conta que dali a alguns anos eu iria sentir uma baita saudade disso.

Então agora, seja no shopping, na Chuvisco nova ali da Bocaiuva ou até no aeroporto, estarei bebericando uma xícara doce, cremosa e quente na medida certa, sem exageros. E sem adoçante, pai, desculpa.

Mas é para você, e me faz bem.

Cappuccino preferido do pai
O primeiro cappuccino sem ele

As saudades dos debates sobre a situação do Vasco

Outra saudade que me arrancou um sorriso aconteceu após uma vitória do Clube de Regatas Vasco da Gama no último domingo. Por um instante, veio o instinto de ligar para o pai e repercutir o grande (e raro) resultado.

O Vascão foi uma grande paixão do meu pai, e o futebol seguia sendo um de seus passatempos preferidos. Se tinha 22 homens correndo atrás de uma bola, ele estava assistindo. E nos anos finais, passou a ter companhia da minha mãe, que também comentava no telefone sobre os resultados do fim de semana.

A demência acabou prejudicando, de forma cruel, a compreensão do pai sobre o futebol. Inventava novas regras, confundia resultados e se irritava com conspirações que ele mesmo criava. Assim, foi perdendo até esse prazer.

Confesso que, quando ele me ligava no último ano, eu ficava triste e às vezes impaciente com essa situação. Não que o Vascão fosse trazer muita alegria caso a cognição dele estivesse boa, evidentemente.

E aí tem um pouco daquilo que eu falei no começo, e por isso me deu uma súbita vontade de ligar para ele e comemorar a vitória: as lembranças ruins vão sendo trocadas pelas memórias boas. Memórias de quando debatíamos intensamente os jogos do domingo, com o pai citando (e xingando) jogadores cruz-maltinos de quem eu nunca havia ouvido falar.

Mas era muito divertido.

Eu e o pai com a camisa do Vasco
Eu e o pai celebrando alguma vitória do Vascão

O tempo vai passando e mudando as saudades

Cada dia é um dia desde que meu pai se foi. As lembranças provocam lágrimas e sorrisos, mas esses últimos têm sido mais constantes.

Seja em um jogo do Vasco ou em um cappuccino bem doce com cacau e canela, a presença do pai ainda surge do nada, de repente, embora não seja de uma hora para outra. Porque ele está sempre presente em quem eu sou e em tudo que eu faço.

E eu espero que ele esteja em algum lugar achando graça do filho metido a italiano tomando os cafés preferidos dele.

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Comentários

22 respostas para “O cappuccino preferido do meu pai e as pequenas saudades que fazem sorrir”

  1. Avatar de Cláudia Volpato Andrade
    Cláudia Volpato Andrade

    Que coisa mais linda, meu irmãozinho amado. Morrendo de chorar, claro.

  2. Avatar de Patricia Nicolazzi Volpato
    Patricia Nicolazzi Volpato

    Emocionada aqui irmão! Texto lindo, com alma! E sim,vamos lembrar das coisas boas que vivemos com nosso pai ! Quando passo pelo Riviera café no Shopping, ainda num impulso procuro por ele.❤️

    1. Avatar de EDUARDO NICOLAZZI
      EDUARDO NICOLAZZI

      Bonito Bruno!!! Muito bonito!!! Bem emocionante mesmo!!!
      Tenho também muito boas lembranças dele!

    2. Avatar de Bruno Volpato

      Com certeza tomaremos um cafezinho juntos por lá em breve! 🙂

  3. Avatar de Paulo Guilhon
    Paulo Guilhon

    ❤️❤️❤️

  4. Avatar de Edite Barbosa
    Edite Barbosa

    Nossa, querido Bruno. Seu texto é lindo, como sempre. Você escreve de dentro e isso eu amo. Estou impressionada com as coincidências: meu pai era pai-avô. O que eu escutava era “que linda a sua netinha”! Não respondia, a timidez me impedia, mas a sensação era exatamente a mesma: uma inquietude que eu só consegui entender mesmo um pouco mais velha, esse medo de que ele fosse morrer cedo para mim. As comidas super quentes, todas, também eram imprescindíveis para ele. E o Vasco era sua paixão e meu sofrimento. Nunca suportei as inúmeras e inevitáveis derrotas do time, que suspeito doíam mais em mim do que nele, que ansiava a cada jogo, que fosse uma vitória, só para ver o brilho nos olhos dele.
    Obrigada por me fazer recordar e sim, com o tempo só ficam as memórias felizes, que no final são muito mais significativas e acolhedoras. Um abraço grande dessa senhora professora que te admira muito.

    1. Avatar de Bruno Volpato

      Tia Edite, mais uma vez obrigado por esse seu comentário mais que especial. O legal de contar nossa própria história é que sempre acabamos encontrando alguém com quem temos algo em comum, mesmo sem imaginar! Um abraço grande também. 🙂

  5. Avatar de Patricia Reiner de Sá Nicolazzi
    Patricia Reiner de Sá Nicolazzi

    Exatamente, Bruno, tuas lembranças nos deixam lágrimas e sorrisos!

  6. Avatar de Luciana Nicolazzi da Rocha
    Luciana Nicolazzi da Rocha

    Que texto rico e lindo Bruno! Quantas lembranças boas e amorosas existem com teu pai, meu tio amado.

  7. Avatar de Amanda Branco
    Amanda Branco

    Eu adoro seu estilo de escrita! Fiquei com vontade de tomar um capuccino também. Se expressar por meio das palavras tem esse poder mágico de conseguir nos teletransportar. Sinto muito pelo seu pai, mas ao mesmo tempo que bom que vocês tiveram lindos anos – e muitos momentos – juntos!

    1. Avatar de Bruno Volpato

      Muito obrigado pelas suas palavras, Amanda! Espero que deguste um cappuccino bem saboroso. 🙂 Abraço!

  8. Avatar de Tino
    Tino

    Um texto admirável sobre uma pessoa admirável. Abraço, Bruno.

  9. Avatar de Ana Sofia
    Ana Sofia

    O Caio me mandou esse texto (porque a gente volta e meia se manda os teus textos) e meu olho ardeu de lágrimas que eu tentei conter.
    Sempre tive certeza de que aqueles que amamos nunca partem, porque estão entranhados em nós. Nas pequenas coisas. No cafezinho, nos rituais, nas manias, naquele um milhão de coisas mundanas que deixam saudades.
    Teu pai certamente sorri e te faz companhia toda vez que tu tomas um cafezinho por ele. Aliás, acho que não tem coisa mais bonita que viver nas memórias felizes de um filho – ainda que cheias de saudade.

    1. Avatar de Bruno Volpato

      Ô querida, que comentário bonito… <3
      O luto está me ensinando algumas coisas, quase tudo através de sentimentos que eu nem sabia que existiam. É um dia de cada vez. 🙂
      Beijo pra ti e pro Caião.

  10. Avatar de Mariza Maestri Stahelin
    Mariza Maestri Stahelin

    Grande seu Volpato. Qtas vezes ele me pedia um cafezinho depois da janta e deixava bem frizado, bem quente!

    Abraço Bruno.

    1. Avatar de Bruno Volpato

      Era fundamental estar fervendo, Mariza! 🙂

  11. Avatar de VANDERLEI MORAIS MEDEIROS
    VANDERLEI MORAIS MEDEIROS

    Lembro que já nos momentos mais.dificeis ligava pra ele avisand8 quem Vasco estava jogando e aí tentava lugar no canal do jogo e notava que já tinha dificuldade em ascessar ao canal próprio. Velho.e bom Amigo do caputino no.shopping. saudades…..

    1. Avatar de Bruno Volpato

      Querido amigo Vanderlei, a amizade de vocês foi muito especial. Saudades de ouvir as histórias das pescarias de vocês. Grande abraço, Tchê! 🙂

  12. Avatar de Leslie
    Leslie

    Um texto lindo, escrito com muito amor. Quantas lembranças boas, que vao ficar sempre na memória e no coração. Parabéns Bruno.

    1. Avatar de Bruno Volpato

      Obrigado, tia querida! Vamos sempre lembrar com carinho do “Gordo”. 🙂

  13. Avatar de Paula Tebett

    Estou escrevendo com os olhos cheios de água. Um texto muito amoroso e até divertido sobre o amor em família e a dor de perder alguém especial.
    Passei por isso há pouco tempo quando perdi meu irmão de maneira inesperada…

    Sinta meu abraço afetuoso e quando a gente se encontrar, bora tomar um cappuccino?

    1. Avatar de Bruno Volpato

      Obrigado pela mensagem, Paula. 🙂 Com certeza, um cappuccino sempre vai bem. Abração pra ti também!

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