Nick Cave sempre me despertou curiosidade, mas, em anos e anos de explorações roqueiras, nunca foi para a frente da fila. Apenas quando fiquei amigo de um fã do músico australiano é que passei a ouvir algumas de suas canções. Então fica o agradecimento ao Gabriel Rocha, dono d’A Arte da Fuga.
Uma dessas músicas está na minha lista das mais belas que conheço, e também figura com destaque na minha playlist do Spotify para curtir uma fossa. Devo admitir que nunca a ouvi enquanto, de fato, vivia uma dor de cotovelo, mas o Bruno solteiro e meio perdedor certamente teria encontrado apoio nela.
É a linda “Into my Arms”, cujo também lindo clipe você pode ver e ouvir abaixo. Deixe rolando e continue lendo o post, que apesar disso não é sobre música.
Falando em Spotify, essa é a segunda mais tocada de Nick Cave na plataforma. A primeira é “O Children”, que talvez você conheça pela cena em que Harry Potter e Hermione Granger dançam em As Relíquias da Morte: Parte 1.
Imagino que seja por isso, inclusive, que é tão popular. Se não for, depois o Gabriel Rocha me corrige.
The Red Hand Files: a newsletter do Nick Cave
Foi também graças ao Gabriel que, anos depois de termos trabalhado juntos, descobri a newsletter do Nick Cave. A The Red Hand Files começou em 2018 e tem uma premissa bem básica: as pessoas enviam perguntas e o músico as responde. A periodicidade é semanal, com alguns intervalos, faltando apenas quatro edições para a de número 300.
Embora em algumas, bem poucas na verdade, Nick tenha sido mais leve e bobo, as temáticas giram em torno de arte, fé, música, dor, amor, vida, morte e tudo o que nos faz humanos. O luto é um tema recorrente, já que a newsletter surgiu algum tempo após o cantor perder um filho de forma trágica.
Ele se dedica a dar boas respostas, até porque muitas das perguntas enviadas são profundas e revelam sentimos dolorosos de quem enviou.
A seguir, vou postar traduções de duas edições que me marcaram muito. Espero que você goste, são um pouco longas. Mais adiante, ainda falo sobre a entrevista do título deste post.
Sobre estar em uma encruzilhada na vida ou na carreira – edição 269, de 16 janeiro de 2024
Pergunta (nessa edição ele juntou duas):
Você pode falar sobre estar em uma encruzilhada na sua carreira, vida pessoal ou em geral mesmo? Especificamente, como você decide o caminho a seguir? Você faz uma mudança, mergulha de cabeça e apenas espera pelo melhor? Sinto-me um pouco perdida (me recuperando de um diagnóstico de câncer) cheio de preocupação sobre retomar o trabalho e a vida, pensando que a vida nunca mais será a mesma, mas desejando de muitas maneiras que fosse. – Mary, da Irlanda
Você está em turnê pelos EUA, fez um disco, o que está fazendo agora? Nada, espero! – Emilia, de Toulouse, França
Resposta:
Queridas Mary e Emilia,
Quando paro para examinar as principais encruzilhadas da minha própria vida, parece que a força motriz por trás da direção da viagem quase sempre foi intuitiva, até mesmo acidental, sem nenhuma consideração séria sobre se era a decisão certa ou não. Mas acompanhando essas decisões vagas e arbitrárias, havia um intenso comprometimento e aplicação para torná-las realidade. Uma intuição simples, muitas vezes mal sentida, levada adiante pela determinação obstinada de fazer o que precisava ser feito. E ao redor dessas decisões impulsivas da vida dançam pequenas serendipidades corretivas que me cutucam, para um lado e para o outro, ao longo do curso da minha vida.
Eu já senti que o caminho da existência era totalmente aleatório e não planejado, mas agora não tenho tanta certeza. Nesta fase da minha vida, sinto que essas decisões contingentes estão resultando em algo, que o destino está em ação e, à medida que as peças se encaixam misteriosamente, que há algum tipo de significado final. A vida não parece aleatória, mas parte de um sistema superior, onde a soma dessas intuições tem uma ordem, um propósito maior, uma orientação eventual além do que nós mesmos podemos perceber. Mesmo no turbilhão de nossas próprias tragédias pessoais, quando o cosmos parece mais caótico e imparcial, passei a ver o mundo, em sua complexidade, se reorganizando em direção ao significado.
Emilia, no momento estou esmaltando estatuetas de cerâmica em meu estúdio nas margens do Rio Ouse em Lewes. O fato de eu estar criando uma série de cerâmicas parece tão enigmático e arbitrário para mim quanto qualquer coisa que já fiz. Durante o lockdown, acordei uma manhã com o desejo de fazer algo em argila, um diabo vermelho brilhante para ser mais preciso, foi um impulso totalmente aleatório. Agora, três anos depois, tenho dois assistentes, Liv e Dom, me ajudando com a tarefa monumental de esmaltar as estatuetas em preparação para uma exposição em Bruxelas. Susie conheceu Liv e Dom por meio de uma série de eventos fortuitos no ano passado e os apresentou a mim. Liv e Dom são gêmeos idênticos e seu sobrenome é Cave. Como tudo isso aconteceu é um profundo mistério. Minha cerâmica surgiu de um desejo pequeno e vago que fui compelido a perseguir, e agora aqui estou, um ceramista de verdade.
Mary, lamento que você esteja passando por um momento difícil. Não sei quais decisões você está enfrentando, mas penso que você deve ser intuitiva e brincalhona em suas escolhas e determinada em sua aplicação. Estamos sempre cheios de preocupações até começarmos a tarefa, mas descobri que, no final, as coisas tendem a encontrar seu caminho. Confie em suas intuições, elas são os sussurros de Deus, a força justa e inspiradora, nos movendo sempre para a frente.
Com amor, Nick
Sobre amor e casamento – edição 199, de 11 de julho de 2022
Você tem um espaço seguro (safe space, no original)? Como você o descreveria? – Arianna, de Milão, Itália
Resposta:
Querida Arianna,
Hoje em dia, parece difícil encontrar espaços seguros — o mundo, por natureza, parece precário e inseguro. Mas, depois de pensar um pouco, cheguei a uma resposta que provavelmente é meio cafona e influenciada pelo fato de que, no momento em que escrevo, estou em turnê há seis semanas e, bem, sinto falta da minha esposa. Minha resposta também envolve um acidente feliz e fortuito sobre o qual a vida que vivo agora é construída — ter encontrado uma parceira que me ama e a quem eu amo. Entendo que, nesse aspecto, sou extraordinariamente afortunado e extremamente privilegiado. Tenho um casamento feliz.
Mas meu “espaço seguro” não é o casamento em si. Longe disso. Um casamento é muitas coisas, e quase nenhuma delas é segura. Um casamento, na sua melhor versão, é desafiador, perigoso, complicado e significativo, e requer, como qualquer coisa de verdadeiro valor, uma certa quantidade de sacrifício e uma certa quantidade de trabalho. Dentro dele existem tristezas e alegrias, grandes e pequenas, e fracassos e triunfos também. Mas dentro desse vórtice conjugal complexo, há, para mim, uma constante que nunca vacila – e aqui está meu espaço seguro.
Meu espaço seguro está no olhar da minha esposa. Com isso, quero dizer que quando olho nos olhos da minha esposa, encontro uma beleza, e essa beleza tem um valor moral, de bondade; uma bondade que se manifesta como um tipo de benevolência. E essa bondade reflete de volta e provoca minha própria bondade e, por sua vez, a bondade necessária do mundo. Dentro dessa entrada e saída de consideração recíproca está nossa proteção mútua, que é minha salvação e a salvação da minha esposa. Simplificando, nós nos vemos e, por meio dessa visão, queremos o melhor um para o outro, sem condições – ela me tem e eu a tenho. Ali, nos olhos benevolentes da minha esposa, está meu espaço mais seguro e meu privilégio mais verdadeiro.
Com amor, Nick
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A entrevista de Nick Cave para Stephen Colbert no Late Show
Foi com a leitura de uma edição sobre cinismo e esperança da newsletter, a pedido do apresentador Stephen Colbert, que Nick Cave encerrou sua entrevista no Late Show na semana passada.
Tanto esse número da newsletter quanto a entrevista falaram muito sobre o luto, já que anos depois de perder o primeiro filho ele perdeu outro, também em circunstâncias complicadas. No entanto, Nick é um árduo defensor de buscarmos ativamente a beleza e, se possível, a felicidade no mundo e na vida.
Ele contou a Colbert sobre a beleza dos pequenos atos de outras pessoas que, mais que palavras, ajudaram a curar sua dor. O apresentador comenta que, de certa forma e em geral, essa dor do luto só é sentida por quem tem sorte, pois isso significa que a pessoa viveu bastante e amou profundamente.
É difícil de aceitar e entender, mas isso é em essência a experiência humana.
Nick Cave foi ao Late Show para divulgar seu novo disco, Wild God, que justamente tem uma pegada mais animada, em contraste aos seus habituais trabalhos mais sombrios. Seu livro mais recente, Faith, Hope and Carnage, também é apresentado (e recomendado pelo Gabriel Rocha).
Colbert e Cave conversaram de forma mais profunda que o normal para um talk show americano. Além do luto, debateram a relação transcendental que temos com a música. O cantor lamentou o uso de Inteligência Artificial para a criação de canções, criticando quem vê o doloroso processo criativo como um empecilho para a produção de arte. Para ele, essa é a parte mais importante.
Tire 20 minutos do seu dia para ver abaixo a entrevista na íntegra. Vale a pena! Depois me conte aqui nos comentários o que você achou.
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