“Lá vem eles de novo! Olha só que absurdo!” As imortais palavras de Galvão Bueno ainda ressoam na mente de quem viveu, em 8 de julho de 2014, o maior vexame da história do futebol: a derrota do Brasil por 7 a 1 para a Alemanha, no estádio do Mineirão, nas semifinais da Copa do Mundo.
Dez anos se passaram. O #7a1Day, como é conhecido nas redes sociais, é sempre para mim um ritual anual de reflexão a respeito da Seleção Brasileira. A recente eliminação da Copa América torna a efeméride ainda mais relevante.
O que mais me incomoda no 7 a 1 é que, até hoje, nenhum dos envolvidos foi preso. Sim, porque é preciso tratá-lo como o que ele verdadeiramente foi: uma grande tragédia nacional.
A origem do 7 a 1: a Copa do Mundo de 2006, na Alemanha
Grandes tragédias não acontecem apenas em um dia. Elas são construídas por muito tempo, às vezes anos. Para mim, a gênese do 7 a 1 está na Copa de 2006.
Coincidentemente, o torneio foi disputado na Alemanha. O Brasil chegou como favorito, graças ao famigerado Quadrado Mágico formado por Kaká, Ronaldinho, Adriano e Ronaldo.
Além disso, duas atuações épicas em 2005 haviam iludido todo mundo: um 5 a 0 no Chile pelas Eliminatórias e um 4 a 1 na Argentina na final da Copa das Confederações. A Seleção jogou muita bola em ambas, de fato.
O problema é que o Quadrado Mágico não atuou nessas partidas. Robinho substituiu Ronaldinho na primeira e Ronaldo na segunda. Na Copa, ele foi para o banco, mesmo com Ronaldo e Adriano visivelmente acima do peso.
Para completar, a defesa era baseada em um tripé que vivia má fase e jogava mais pelo nome: o goleiro Dida e os laterais Roberto Carlos e Cafu, este último capitão da equipe desde a conquista do penta em 2002.
Aliás, sabe quem também não jogou naquela lendária goleada contra a Argentina em 2005? Roberto Carlos e Cafu. Seus substitutos, Cicinho e Gilberto, pediam passagem, mas também foram reservas na Copa do Mundo de 2006.
A revista Placar até tentou avisar, mas ninguém deu bola:
Assim, o resultado acabou surpreendendo quem não estava prestando atenção. Nos arrastamos até as quartas-de-final, onde fomos demolidos pela França, que viria a ser vice-campeã, com uma atuação de gala de Zinedine Zidane.
O único jogo em que a Seleção Brasileira teve um bom desempenho foi na última rodada da primeira fase. Com o time já classificado, o técnico Carlos Alberto Parreira poupou titulares e, mesmo assim (ou por causa disso), ganhamos de 4 a 1 do Japão.
Sabe quem não estava em campo naquela partida? Cafu, Roberto Carlos e Adriano. E sabe quem estava? Cicinho, Gilberto e Robinho.
Os anos seguintes ao fracasso do Quadro Mágico
A decepção com a Seleção de 2006 provocou uma pequena revolução. O capitão do Tetra, o ex-volante Dunga, assumiu como técnico do time, mesmo sem quase nenhuma experiência anterior. Seu ativo era ser disciplinador, já que a culpa do fracasso do Quadrado Mágico foi colocada na grande bagunça da preparação e dos treinamentos na Copa da Alemanha.
Infelizmente, o diagnóstico estava errado e teve consequências.
Dos contestados, apenas Kaká seguiu sendo convocado regularmente. Ele chegou a ser eleito o melhor jogador do mundo em 2007. Robinho também assumiu a titularidade em um time muito mais defensivo.
A nova filosofia era de um futebol pragmático e de resultados, abandonando o tal do Jogo Bonito das propagandas da Nike. Mas não precisava ter sido 8 ou 80.
Os resultados vieram sob a forma de títulos da Copa América de 2007 e da Copa das Confederações de 2009, além da melhor campanha das Eliminatórias. Incrível, não? Bom, o time anterior também tinha ganhado exatamente os mesmos títulos.
E nós seguimos sem aprender nada. Dunga se julgava incompreendido e injustiçado, desde a época de jogador, e vivia às turras com a imprensa.
Aí, na Copa do Mundo de 2010, na África do Sul, sofremos mais um derrota nas quartas-de-final. Dessa vez, perdemos de virada de 2 a 1 para a também futura vice-campeã Holanda.
Sendo justo, o time de 2010 ficou muito mais perto de ir adiante que o de 2006. O time era muito bom na defesa e tinha um ataque funcional. Perdeu mesmo por detalhes, com dois gols esquisitos. O Brasil não merecia perder, ao contrário da Copa anterior, e quase empatou mesmo com a expulsão por agressão do volante Felipe Melo.
Naquela eliminação, aliás, uma outra semente foi plantada para a tragédia do 7 a 1 em 2014 e para os anos seguintes: o desequilíbrio emocional dos jogadores da Seleção Brasileira.
O começo do ciclo da Copa do Mundo de 2014
Dunga saiu de campo após o apito final contra a Holanda, sem esperar ou consolar seus jogadores, e saiu do cargo logo depois, na volta ao Brasil.
Ainda em 2010, aconteceu algo que muita gente se esqueceu, mas que considero decisivo para tudo que aconteceu nos anos seguintes com a Seleção Brasileira.
O escolhido para ser o novo comandante do time, já de olho na Copa do Mundo disputada no Brasil, foi Muricy Ramalho. Multicampeão com o São Paulo naquela década, ele combinava um amplo repertório tático com a fama de disciplinador. Era um discípulo do festejado Telê Santana, que comandou o Brasil em duas Copas, incluindo o lendário esquadrão de 1982.
Só que Muricy não foi liberado pelo Fluminense, clube que treinava à época. Inexplicavelmente para os padrões do futebol brasileiro, ele acatou a decisão.
O treinador viria a conquistar o Brasileirão de 2010 pelo Flu, mas foi demitido ainda em 2011, aí sim algo dentro dos padrões do nosso futebol. No ano seguinte, ganhou a Libertadores com o Santos liderado por Neymar.
Mas deixemos o Neymar para depois.
Quem acabou assumindo a Seleção foi Mano Menezes, que vinha de bons trabalhos no Grêmio e no Corinthians. Porém, era especialista em Série B.
Após uma Copa América ruim e um futebol que não agradava, acabou demitido no final de 2012. Ou seja, metade do ciclo da Copa do Mundo no Brasil foi jogado fora. A pressão só aumentava.
A volta da família Scolari
A solução, mais uma vez, foi apostar na mística: o treinador do Penta, em 2002, estava de volta. Luiz Felipe Scolari era o novo escolhido para guiar o maior seleção do mundo no maior torneio esportivo do planeta, jogando em casa.
Felipão até teve bons resultados no Palmeiras antes de reassumir o cargo, e levou Portugal a um vice da Euro em 2004 e a uma semifinal de Copa em 2006. Mas todo mundo sabia que a escolha não era técnica, mas sim simbólica.
Todos queriam a volta da “Família Scolari” de 2002.
Aqui cabe um parêntese: a CBF, dona da Seleção no papel, é comandada por despreparados de moralidade duvidosa desde sempre. Essa gente nunca levou a sério nesse período (e recentemente) o planejamento do time, o que também foi um fator definitivo na construção da tragédia de 2014.
Outro parêntese: este blogueiro não tem mais saco de falar de certos políticos, mas deixo a dica do livro A Copa como ela é: A história de dez anos de preparação para a Copa de 2014, do jornalista Jamil Chade, para entender o papel preponderante da política na “Copa das Copas”. Ou então reler a gloriosa cobertura do Laranjas.
Encerando os parênteses, na gestão de Scolari aconteceu outro momento que conduziu à tragédia: a vitória por 3 a 0 sobre a campeã mundial e europeia Espanha, no Maracanã, pela final da Copa das Confederações de 2013.
Foi um placar que deveria ser visto como atípico, mas que foi lido pela comissão técnica como um atestado de que o trabalho estava perfeito. E foi lido dessa forma por boa parte do país também.
Assim, o time que entrou em campo em junho de 2013 foi exatamente o mesmo que perfilou na estreia da Copa do Mundo, um ano depois: Júlio Cesar, Dani Alves, Thiago Silva, David Luiz e Marcelo; Paulinho, Luiz Gustavo e Oscar; Neymar, Fred e Hulk.
Chega 2014 e, com ele, um Brasil em frangalhos
Em junho de 2013 também estavam acontecendo outras coisas no Brasil. O país, no caso. Como este blog não fala de política, para ver se você se lembra do que estava rolando, deixo a propaganda da Fiat abaixo, que acabou saindo do ar rapidinho. Eu curtia, achei uma pena:
Se o país vivia um caldeirão de emoções, a Seleção deixou para explodir na Copa. No mau sentido, que fique claro.
Após os bons resultados de 2013, incluindo uma goleada sobre a França, o Brasil fez apenas um amistoso em 2014 antes se reunir para a Copa do Mundo. A preparação, mais uma vez, seria falha.
A estreia já deu mostras do nervosismo do time. Marcelo fez o primeiro gol da Copa, só que contra. Neymar empatou em jogada individual e, já na reta final do segundo tempo, virou após a marcação de um pênalti absurdo sobre o atacante Fred.
O time terminaria empatado com o México em pontos, garantindo o primeiro lugar no saldo de gols. O clima de festa nas ruas do Brasil inteiro contrastava com a cobrança das arquibancadas por um futebol de mais qualidade, com um público hostil e politicamente pilhado.
Aí vieram as oitavas-de-final, contra o Chile. Um gol cagado — característica daquele time, aliás — de David Luiz no começo foi tudo o que a Seleção conseguiu. Depois se fechou, mas logo tomou o gol do empate.
A pressão da torcida no Mineirão (olha ele aí) derrubou os jogadores e a eliminação quase veio no último da prorrogação, com uma bomba do chileno Pinilla no travessão. Pênaltis, e caos instaurado.
O Brasil passou, mas uma cena ficou marcada na história do futebol: o capitão Thiago Silva chorando desesperado após a vitória. Estava escancarado que o time, e não só o país, estava em frangalhos.
Depois daquela partida, vaticinei em um churrasco com amigos: aquela era a pior Seleção Brasileira que eu já tinha visto em toda a minha vida. Ninguém concordou, mas o tempo provaria que eu estava certo.
Nem precisou de tanto tempo assim, foi uma semana depois.
E então chega o fatídico dia: o #7x1Day
O Brasil passaria com certa facilidade pela Colômbia nas quartas-de-final. E os sinais foram bons: um gol cagado (de novo) aos 7 minutos de Thiago Silva, para ele recobrar a confiança, e um golaço (mais meio cagado) de falta do outro zagueiro, David Luiz.
Mas deixemos o David Luiz para depois.
No finalzinho do jogo, porém, com tudo já decidido, Neymar, naquela época de fato um menino e o craque do time, levou uma joelhada criminosa nas costas. Ele fraturou uma vértebra e estava oficialmente fora do resto da Copa. Assim, o país e a Seleção deixaram de estar em frangalhos por menos de 90 minutos.
Para completar, Thiago Silva tomou um cartão amarelo bobo, foi suspenso e também não jogaria a semifinal.
Semifinal essa que seria contra a temida Alemanha. Os germânicos até faziam uma boa Copa, mas nada espetacular. Haviam sofrido para ganhar da Argélia na prorrogação das oitavas, por exemplo.
Eles brilhavam mais pela simpatia (pois é) com que interagiam com o povo da Bahia, onde ficava o hotel em que estavam hospedados e treinavam. E pelo folclórico atacante Podolski, o inventor do rolê aleatório.
O que aconteceu todo mundo se lembra: tomamos 5 gols de pelada em um espaço de menos de 20 minutos no primeiro tempo, e mais 2 gols no segundo tempo. Descontamos no final, mas já estava configurada a maior goleada sofrida pela Seleção Brasileira e, na minha opinião e de muita gente, o maior vexame da história do futebol brasileiro.
Para mim, o time teve ainda o maior colapso psicológico coletivo já registrado no mundo dos esportes. Mas eu não sou psicólogo para cravar essa teoria.
Se por acaso você não se lembra ou se seu cérebro apagou o trauma, reveja os melhores (ou piores) momentos do jogo com a narração de Galvão Bueno. Lá vem eles de novo:
O legado do 7 a 1 no futebol brasileiro
É claro que ninguém deveria ser preso pelo 7 a 1, afinal é só futebol. Mas o futebol também é a coisa mais importante dentre as coisas menos importantes, como diria o treinador italiano Arrigo Sacchi. Então ao menos deveríamos ter tido consequências para alguns dos envolvidos.
E ah, ok, o presidente da CBF na época, José Maria Marín, foi preso em 2015, mas como não foi especificamente pelo 7 a 1, não conta.
O fato é que David Luiz, capitão do Brasil no jogo, continuou sendo convocado apesar de estar mal posicionado em todos os gols da Alemanha. Outros dois que falharam, Fernandinho e Marcelo, seguiram na Seleção até entregarem a paçoca na Copa seguinte, contra a Bélgica.
Luiz Felipe Scolari seguiu prestigiado como treinador, apesar dos protestos de torcedores como eu, que fiquei extremamente desgostoso quando ele assumiu o Grêmio, ainda em 2014. Eu achei aquilo inacreditável.
Felipão ainda seria campeão em vários clubes brasileiros, menos no Grêmio, e no futebol chinês.
Foram punidos, digamos assim, culpados menores, como Bernard, Hulk e Oscar, que nunca mais voltaram à Seleção. Este último, autor do gol de honra contra a Alemanha, até se exilou na China alguns anos depois.
As escolhas continuaram erradas após o 7 a 1: Dunga voltou ao comando do time, sendo demitido 2 anos depois. Ou seja, jogamos metade de outro ciclo de Copa pela metade. O emocional do time também deu mostras que nunca se recuperou, com eliminações traumáticas nas duas Copas seguintes.
Sério, bicho: pra que sete jogadores no ataque faltando quatro minutos com a gente ganhando de 1 a 0 da Croácia em 2022? Não me conformo até hoje.
O principal legado nefasto, porém, é a neymardependência e o estilo de jogo único, com dois pontas abertos com a perna invertida. Ok, Neymar é de fato o maior craque a surgir no Brasil nos últimos 15 anos, mas atiramos toda uma tradição tática de futebol pela janela. Ele poderia atuar bem também em estilos diferentes, como na própria partida contra a Croácia em 2022.
O fato é que agora ele se aproxima do final da carreira, se é que já não a encerrou indo para a Arábia Saudita. E como a gente fica? Para sempre com esses pontinhas?
Pelo que vimos na Copa América 2024 e a eliminação para o Uruguai, um time de verdade com um treinador brilhante, não vai dar certo.
Bom, talvez alguém tenha que ser preso mesmo.
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