A morte de Ayrton Senna completa 30 anos hoje. Na minha geração, todo mundo se lembra de onde estava e do que fazia quando ficou sabendo. Isso é mais clichê que “depois que o Senna morreu eu parei de ver Fórmula 1”.
Eu não parei, mas lembro perfeitamente de 1º de maio de 1994. Tinha 11 anos, e me marcou mesmo. Era louco por corridas e, naturalmente, torcia muito pelo piloto brasileiro.
A primeira temporada da F1 que eu lembro de assistir foi, justamente, a do primeiro título dele, em 1988. Tinha o álbum de figurinhas, achava tudo sobre os carros incrível. Acho que meus pais me deixaram ver no quarto deles a corrida do Japão, de madrugada, em que Senna seria campeão. Eu tinha 6 anos, então confesso que não tenho certeza, pode ser uma daquelas lembranças pós-fabricadas, de tantas vezes que já vi aquelas cenas.
Eu tinha ainda um autorama “Senna x Piquet”, lançado pela estrela em 1987. Anos mais tarde, desenhava os circuitos em um caderno e fazia corridas com pequenas carrinhos de papel. Sim, eu era meio solitário.

Além de tudo isso, a tragédia de Senna foi meu primeiro contato com a morte. Imagino que a experiência de muita gente naqueles dias tenha sido similar à minha. Por isso resolvi contá-la aqui.
Manhã de 1º de maio de 1994
Antes de seguirmos, um pouco de contexto. O fim de semana do GP de San Marino de 1994 foi o mais trágico da história da Fórmula 1. Nos treinos de sexta-feira, o então novato Rubens Barrichello quase morreu numa batida. No dia seguinte, também no treino de definição do grid, o piloto austríaco Roland Ratzenberger morreu.
Um piloto de F1 não morria em um fim de semana de Grande Prêmio desde 1982. Nos anos 50, 60 e 70, a categoria era um verdadeiro abatedouro de gente, em que a morte era vista como normal.
Foram implantadas medidas de segurança gradualmente, até a F1 perder essa aura de açougue. Isso até 1994, quando uma mudança de regulamento apressada resultou, entre outras coisas, na morte de Ayrton Senna.
Para saber mais sobre tudo que rondava aqueles dias e aquela temporada, recomendo muito a série em 12 capítulos do GE. Ela foi escrita pelo jornalista Livio Oricchio, que estava lá em Ímola. A riqueza em detalhes tanto da parte técnica quanto do relato pessoal do repórter é impressionante e comovente.
Além do horror dos dois dias anteriores, Senna ainda estava sob pressão por ter abandonado as duas primeira provas da temporada. E, pior, um jovem chamado Michael Schumacher havia vencido ambas.
A largada do GP de San Marino deu sequência ao show de horrores. Um carro não conseguiu arrancar e foi atingido por trás com muita força por outro. Uma roda voo por cima do alambrado e feriu dezenas de torcedores na arquibancada. A coisa estava feia mesmo.

Eu estava muito impactado pelos acidentes de Barrichello e Ratzenberger. Não peguei a fase moedora de carne humana da F1. Tudo aquilo era assustador.
Senna havia largado na pole. Após a batida da largada, a direção de prova manteve os carros atrás do safety car. Se hoje o carro de segurança é uma super Mercedes ou uma nave da Aston Martin, até 1994 era um carro de rua.
Sim, um Opel Vectra. Lento, muito mais lento que um F1.
Por isso, os carros ficaram com os freios e pneus frios, o que provavelmente causou perda de pressão, deixando o carro de Senna mais baixo e batendo no chão. De novo, vale ler os relatos da série do GE para entender.
Na volta 7, a segunda após a saída do safety car, Senna passou reto na curva Tamburello e bateu a mais de 200 km/h.
Minha reação instintiva, como fã de F1 e do brasileiro, foi ficar puto. Pensei que ficaria cada vez mais difícil para Senna alcançar Schumacher na pontuação.
Eu tenho a memória, inclusive, de desligar a TV após a batida. Não tenho certeza, porque me lembro, também, de ficar desesperado com a demora no atendimento. E da esperança que todos tivemos com a famigerada mexidinha de cabeça dada por Senna. Isso tudo durou cerca de 2 a 3 minutos.
A memória nos trai.

Eu me lembro de achar que tudo ficaria bem. “Ninguém mais morre na Fórmula 1”, eu dizia a mim mesmo, apesar de outro piloto ter morrido, literalmente, no dia anterior.
Além disso, a Tamburello já havia sido o cenário de acidentes terríveis em anos anteriores. Nélson Piquet e Gerhard Berger espatifaram seus carros lá em 1987 e 1989 e ficaram bem. Não era possível que Senna tivesse um destino diferente.
A única lembrança do resto da corrida é da narração letárgica de Galvão Bueno. Ele era amigo pessoal do piloto e, obviamente, não queria estar ali.
Tarde de 1º de maio de 1994
O programa tradicional de domingo da minha família era almoçar na associação dos funcionários do banco em que meu pai trabalhava, em Florianópolis. Naquele 1º de maio não foi diferente.
Não havia internet, então o jeito era esperar por mais notícias do estado de Senna pela pequena televisão do local.
Uma curiosidade: a criançada tinha o hábito de pegar refrigerantes no bar da associação, botar na conta dos pais, e ir brincar de estourar champagne no pódio da Fórmula 1, como se fôssemos um certo piloto. Eu acho que naquele fim de semana não fizemos isso.
Estávamos brincando, de qualquer forma. Éramos crianças, afinal. Alguns pais estavam mais quietos, enquanto outros pareciam não ligar muito. Ninguém morria na F1, afinal. Fãs mais antigos da categoria, porém, relembravam algumas mortes famosas, como de Gilles Villeneuve e Ronnie Peterson.
Um pouco antes das 14h, veio o temido som do plantão da Globo:
Na minha memória, quem havia trazido a notícia era Léo Batista, e ele havia jogado os papéis para cima. Estava meio certo, como mostra o vídeo. Foi Roberto Cabrini, que só conseguiu repetir várias vezes que Senna estava morto.
Eu apaguei o registro de como me senti. As lembranças que tenho são de alguns dos funcionários do banco emocionados. Um socou a mesa e outro chorava, contido.
Minha memória daquele dia retorna apenas na noite, quando o Fantástico começou com uma versão fúnebre do Tema da Vitória. De novo, não havia internet, então o programa dominical da Globo seria a forma como teríamos informações completas sobre a tragédia.
O jornal impresso só chegaria, naturalmente, na manhã seguinte.
Lembro da família assistindo às reportagens em silêncio, apenas isso. E do Tema da Vitória fúnebre, que me marcou bastante e tenho claro na memória até hoje.
O funeral de Senna em 5 de maio
O corpo de Ayrton Senna chegou a São Paulo no dia 5 de maio, em um voo da Varig. A série do GE tem um capítulo dedicado a esse voo, já que Livio Oricchio estava ao lado do caixão. É leitura obrigatória.
O piloto teve um funeral de chefe de estado. Eu acompanhei o cortejo do corpo pelas ruas de São Paulo naquela televisãozinha da foto lá no começo do post. Sentado no chão do meu quarto, mudo.
Eu estava com lágrimas nos olhos, sem deixá-las cair. É um padrão que mantenho até hoje, inclusive. Mas tô melhorando.
Minha mãe entrou no quarto e perguntou se eu estava chorando. Eu disse que não, acho que porque, tecnicamente, não estava. Mas provavelmente era algum tipo de vergonha, de não entender direito o que eu estava sentindo.
Ela passou a mão na minha cabeça, provavelmente também sem entender direito o que estava acontecendo.
A Globo ainda deixou de BG durante todo o trajeto do caixão e, depois, nas cenas do velório, o Tema da Vitória fúnebre. Dever ser por isso que essa versão nunca mais saiu da minha cabeça, é impressionante.
Já o Tema da Vitória alegre e original só voltaria a tocar em 2000, no primeiro triunfo de Rubens Barrichello na categoria. Todo fã de F1 se emocionou naquele dia.
O dia anterior e anos seguintes
No dia anterior ao funeral, aliás, os brasileiros tinham passado por outra grande emoção. A Seleção Brasileira entrou em campo no estádio da Ressacada, em Florianópolis, para o último amistoso antes da Copa de 1994.
Eu estava lá e o clima era de luto geral, evidentemente. Antes de a bola rolar, toda a torcida presente cantou “olê olê olê olá Senna Senna” a plenos pulmões. Foi mais um momento muito emocionante em que obtive sucesso em segurar as lágrimas e reafirmar minha masculinidade aos 11 anos.
O Brasil venceu por 3 a 0, e em um dos gols os jogadores comemoraram formando uma fila e simulando estarem pilotando um carro. Ficou legal.
Nos anos seguintes, eu segui acompanhando a Fórmula 1. O espectro de Senna ronda todos os pilotos e torcedores brasileiros da categoria, já que o mais perto que chegamos de um título foi com Felipe Massa, em 2008.
Por fim, em 2018, li um dos relatos mais impressionantes daqueles dias, feito pelo jornalista de automobilismo Flávio Gomes. A passagem que mais me marcou foi a seguinte, dita pela médica que faz as autópsias de Senna e Ratzenberger:
“Os dois jovens pilotos estavam na ante-sala da câmara frigorífica, e pareciam dormir. Senna tinha uma ferida costurada na parte frontal da base do couro cabeludo, mas seu rosto estava sereno e já não apresentava muito inchaço. Ratzenberger era de uma beleza típica do Tirol Austríaco. Um belo rapaz. Senna, o grande campeão. Ratzenberger, o piloto que fazia apenas sua terceira corrida. Ambos apaixonados pela mesma coisa, ambos rapazes que fizeram do risco e da velocidade suas vidas, e que estavam ali na nossa frente para mostrar como a existência é efêmera, a realidade concreta da transitoriedade da vida.”
Fiquei tão impressionado que compartilhei o texto no Facebook, coisa que em 2018 eu já não fazia tanto. E escrevi o seguinte:
Ao ler a palavra jovem para se referir ao Senna, minha reação foi de estranheza, tipo “não, ele já era um veterano de 34 anos quando morreu”. Aí lembrei que eu tenho 35 e bateram duas deprês pesadas: 1 – Senna era novo demais quando morreu; 2 – eu já sou mais velho que o Senna quando morreu.
É muito louco pensar que eu já vivi muitos anos a mais que Ayrton Senna da Silva, alguém que parecia invencível e imortal.
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